República - A seção dos estudantes, por Andréa Dip, Camila Gomes, Marília Melhado, Camilo Leal, Maurício Reimberg, Tadeu Breda.
É lamentável que alguns estudantes ainda não saibam brincar. Outra vítima de trote, dessa vez na Universidade de Franca, leva a mais uma discussão sobre o tema. Fomos ouvir um professor universitário, que é contra, e um “trotista” convicto, a favor.
Brincadeira? Todo início de ano é a mesma coisa. As aulas nas universidades começam junto com os trotes. E anualmente ganham as manchetes dos jornais casos de abusos na prática que recebe os novos alunos. Dessa vez foi Tiago Rosa Careta, da Universidade de Franca, de 21 anos, que sofreu queimaduras no pescoço e no couro cabeludo após ser atingido por permanganato de potássio, produto químico usado como bactericida.
Além de casos de agressão física, existem os pedágios (quando os calouros vão pedir dinheiro nos semáforos), a pintura de rostos, ouvidos e cabelos, aulas-trote e atividades específicas de cada universidade. Se são violência ou “parte do processo”, cada um tem uma opinião.
“O trote é um rito de passagem fundamentado num processo de humilhação”, explica o professor Antônio Zuin, do Departamento de Educação da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Zuin é autor do livro O Trote na Universidade, que considera a prática como um reflexo do comportamento dos professores em sala de aula: “O trote se liga visceralmente à ‘soberba intelectual’ dos docentes”.
Para ele, se os castigos físicos não fazem mais parte da realidade da sala de aula, as punições morais ainda estão presentes e podem ser percebidas em atitudes sarcásticas e irônicas, por exemplo. “O veterano encontra na agressão física e psicológica aos calouros a maneira de expressar a humilhação que ele teve de suportar em silêncio diante do docente”, acredita Zuin.
Segundo ele, os primeiros trotes teriam aparecido junto com as primeiras universidades européias, na Idade Média. No Brasil, o primeiro registro de morte de calouro data de 1831, na Faculdade de Direito de Olinda, PE, e o último de 1999, quando o estudante Edison Hsueh foi encontrado morto na piscina do clube da Faculdade de Medicina da USP.
Depois desse episódio (que jamais foi resolvido), o governo do Estado de São Paulo sancionou a lei 10.454/99, que proíbe a realização de trote aos calouros de universidades estaduais quando realizado sob coação, agressão física ou moral ou sob constrangimento.
A lei também recomenda a adoção de medidas preventivas, além de expulsão e sanções penais aos culpados. Mas o trote não acabou. Para Ritchie, conhecido na Unesp pelos trotes que aplicou aos estudantes de veterinária, a prática jamais deveria acabar. “O bixo está indo para um lugar em que já existe algo presente. Então, ele se adapta às situações: ou conquista o ambiente, ou se isola dele.”
Ritchie, que não autorizou a publicação de seu nome verdadeiro, conta que ganhou esse apelido após dançar e cantar, pelado, a música Menina Veneno, em cima de uma mesa na principal lanchonete da cidade. Ele diz que, para as pessoas que olham de fora, é difícil entender a relação que se desenvolve entre estudantes que abraçam a prática do trote. “Pode parecer um sinal de submissão obedecer às ordens de um veterano, mas, para mim, é consideração. Porque o cara brincou comigo quando entrei na faculdade, mas depois me ajudou, foi a pessoa que me acolheu”, explica.
O professor Antônio Zuin concorda que, de fato, o trote integra bastante os que dele participam, como um ritual de aceitação. “Mas é uma integração pela dor e pela humilhação, que acaba produzindo um prazer sadomasoquista nas pessoas, que se legitimam a se vingar, nos próximos novatos, a dor que tiveram de reprimir”, analisa. E completa: “O trote não é uma questão que se restringe ao livre-arbítrio do calouro, porque ele é ameaçado de várias maneiras, principalmente de exclusão”.
Mas Ritchie como faz quando o bixo não quer participar da brincadeira? “A gente pergunta pro cara: ‘Se todos os seus amigos estão brincando, por que você não vai fazer?’ Daí, ele tem o direito de se manifestar, e eu também tenho o direito de falar: não é assim que as coisas funcionam aqui. Existe a vontade dele e a minha. Os grandes problemas saem quando ninguém cede”, ameaça o menino veneno.
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