sábado, 21 de abril de 2007

ENTREVISTA

Séculos de violência no campus

Um filósofo gaúcho estudou a história do trote universitário, as suas conseqüências e hoje é um crítico mordaz do ritual

Paulo Denisar Fraga escapou do trote quando entrou no curso de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria, em 1988. Veterano, mergulhou no assunto. Em 1993, escreveu A Violência no Escárnio do Trote Tradicional, uma pesquisa alentada sobre o tema da humilhação dos calouros.

Época
: Por que o senhor é contra o trote?
Paulo Denisar Fraga: Eu sou contra a violência. Os rituais têm o papel de preservar a cultura existente nas sociedades, mas o trote é o avesso disso. Ele não conserva a cultura, a ciência e a razão, as bases da universidade. Também perverte o sentido da alegria. O trote inicia na barbarização e contraria a essência da relação pedagógica, que é educar os novatos. Eles são execrados, sofrem o escárnio e o deboche.

Época
: Quando surgiu o trote?
Fraga: Talvez na Antiguidade, mas na Idade Média teve seu momento de glória. Os estudantes que vinham da área rural eram batizados pelos do mundo urbano. O primeiro caso violento registrado no Brasil é de 1831. O calouro de Direito Francisco Cunha e Menezes foi morto a facadas no Recife. Em Portugal, sempre foi uma tradição. O grupo Rancho da Carqueja ficou famoso no século 18, na Universidade de Coimbra. Depois se transformou num bando de criminosos. O trote é um batismo de fogo.

Época
: Por que ele sobrevive?
Fraga: Porque é a expressão e o reforço da estratificação social. Como nós vivemos num mundo em que o trabalho intelectual vale muito mais que o manual, mesmo um calouro vestido de palhaço pode exibir na praça seu novo status. Um universitário é supostamente superior ao cidadão que não teve essa oportunidade. O trote sobrevive porque os calouros aceitam e repetem as idéias dos veteranos.

Época
: Qual é a relação entre o tipo de curso e a violência?
Fraga: Os trotes mais violentos ocorrem nos cursos que têm mais status na universidade. O tributo é mais alto para entrar nesses feudos.

Época
: Ele sempre foi agressivo?
Fraga: A violência é ocultada pelo peso da tradição. No nosso país, nos anos 60, com o movimento estudantil, o trote foi uma forma de contestação social. Os calouros eram convidados para manifestações a favor das reformas de base ou em defesa da universidade pública. Em 1968, quando o AI-5 fechou o Congresso, o trote foi reprimido. Houve a degeneração de sua versão cultural para a violência de hoje.

Época
: Qual a semelhança entre o trote e a iniciação nos quartéis?
Fraga: Pode-se supor que a vida universitária é diferente da dos quartéis. Quando os soldados ficam em forma e gritam palavras de ordem, estão desenvolvendo sua agressividade. No trote, a universidade fica próxima dessa experiência. Os veteranos também colocam os calouros em filas e gritam ordens, sustentando sua superioridade.

Época
: Por que os diretores das universidades fazem vistas grossas ao trote?
Fraga: Porque ele está escorado num lastro de tradição histórica. As autoridades se colocam acima do problema. Tem havido uma extraordinária dificuldade de saber o que aconteceu no caso do Edison Hsueh, calouro morto no trote da Faculdade de Medicina da USP. O temor de falar da morte de um colega, de um igual, mostra o quanto o trote é violento. Ele se sustenta na ameaça e promove o terror.
Andréa Barros

PERFIL
PAULO DENISAR FRAGA

Nascimento

13/3/68, em São Sepé, Rio Grande do Sul

Formação
Licenciado em Filosofia pela UFSM e mestrando na Universidade Estadual de Campinas, São Paulo.

Histórico das mortes

A primeira vítima do trote no Brasil morreu há 160 anos. Houve outras: 1980 Carlos Alberto de Souza,20 anos, entrou em Jornalismo na Universidade de Mogi das Cruzes. Faleceu com traumatismo craniano. 1990 George Mattos, 23 anos, estudante de Direito em Goiás, teve parada cardíaca quando fugia do trote.


Disponível em:
http://epoca.globo.com/edic/19990510/soci2.htm

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